quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Nosso quarto encontro foi acolhedor e aconchegante. Como um filhote que se aninha ansioso até encontrar uma posição confortável para descansar, aos poucos estamos encontrando nosso ritmo, nosso jeito de fazer as coisas. Vamos ficando um pouco mais confortáveis...

O tema escolhido para este encontro foi “A Literatura de Língua Portuguesa pelo Mundo”.
Nos deliciamos com os clássicos decassílabos de Camões, sofremos pelas paixões e desesperos de Florbela Espanca, filosofamos com o moçambicano Mia Couto. Foram quase três horas de puro prazer junto à “Última Flor do Lácio”.

A coordenação foi de Marcelo Silva Dysiuta.

Mas a Confraria da Entrelinhas é um espaço livre, e é assim que procuraremos estabelecer um diálogo verdadeiro com o mundo e suas coisas de mundo. Portanto, sair da zona de conforto faz parte desse processo de amadurecimento.

Vamos desarrumar a cama para o próximo encontro, que terá como tema “O Amor Romântico”.

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(Anne Lee Poeta)

Ser Poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

(Florbela Espanca)

A infinita fiadeira - Mia Couto

(A aranha ateia
diz ao aranho na teia:

o nosso amor
está por um fio!)

A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs. E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem fim nem finalidade. Todo o bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatais funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções. Para a mãe-aranha aquilo não passava de mau senso. Para quê tanto labor se depois não se dava a indevida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E alfaiatava, alfinetava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio, entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação da sua espécie. - Não faço teias por instinto. - Então, faz porquê? - Faço por arte. Benzia-se a mãe, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofício de infinita teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua marca, o engenho da sua seda. Os pais, após concertação, a mandaram chamar. A mãe: - Minha filha, quando é que assentas as patas na parede? E o pai: - Já eu me vejo em palpos de mim... Em choro múltiplo, a mãe limpou as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse: - Estamos recebendo queixas do aranhal. - O que é que dizem, mãe? - Dizem que isso só pode ser doença apanhada de outras criaturas. Até que se decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genéticos. Aquele devaneio seria causado por falta de namorado. A moça seria até virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um amoroso encontro. - Vai ver que custa menos que engolir mosca - disse a mãe. E aconteceu. Contudo, ao invés de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e ficou enamorada. Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa que fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa? A aranhiça levou o namorado a visitar a sua colecção de teias, ele que escolhesse uma, ficaria prova de seu amor. A família desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricação daquele espécime. Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que poderia fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Quando ela, já transfigurada, se apresentou no mundo dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era, o que fazia? - Faço arte. - Arte? E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos - chamados de obras de arte - tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece.

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