Nos encontros da Confraria Entrelinhas, o protocolo
segue sempre as mesmas regras: esteja um calor de rachar ou frio de renguear
cusco; seja o grupo pequeno ou grande, o clima e os participantes são sempre regidos
pela voz que se esquiva por entre milhares de páginas. Na primeira sexta-feira
deste quente janeiro, não foi diferente e, para o primeiro encontro de 2012,
fomos amavelmente recebidos pelo Bruxo do
Cosme Velho para um mergulho em seu universo através de alguns contos.
De saída, fez-nos um convite irrecusável: Suje-se gordo! Como resistir a tal apelo
quando o objeto é a literatura? Deparamo-nos com a reflexão bíblica: “Não
queirais julgar para que não sejais julgados" (Mateus, 7:1-2).
Causa e efeito ou carma? Física ou Religião? Seja como for, o Lopes extrapolou
os conceitos, a narrativa da conta de que o julgamento que recebeu não foi o
mesmo que praticara. Hipocrisia, relatividade, condescendência, erros, enganos,
omissões... Uma pequena amostra da variedade de astros que gravita o orbe
machadiano. Nada diferente das relações ‘des’humanas que nos rodeiam
diariamente.
A obsessão pelo ideal acompanha o homem e evolui com
ele. Mesmo tendo excelência num dom, insatisfeitos e imperfeitos, estamos
fadados a busca-lo a qualquer custo. Cantiga
de esponsais e Um homem célebre
mostraram-nos personagens cuja existência foi consagrada a cultivar a
incompatibilidade entre seu ideal e sua realidade. Músicos hábeis, dedicados,
solitários e descontentes com os rumos de sua produção musical, Mestre Romão e
Pestana, buscam até o último suspiro compor clássicos, mas morrem - ironia das
ironias - “de bem com os homens e mal consigo mesmo” sem ter alcançado seus
ideias.
Chegada então a vez de ler o amor nas páginas de
Machado: juras, compromisso firmado, afastamento, e fidelidade rompida.
Deolindo Venta-Grande, esperando por sua Noite
de almirante descobre no retorno o quanto “la donna è mobile”. Genoveva
“muta d’accento e di pensiero” e diz,
francamente - “Pode crer que pensei muito
e muito em você.... chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou..” Está
montado o palco da tragédia: facada, sangue, esganadura, suicídio... Mas a
“realidade” é que a vida é assim, e mesmo tendo pensado em matar, em suicídio,
o marujo nada mais faz do que retornar à corveta decepcionado, triste,
desiludido; mas calado, retraído. Quem sabe não desfazer a ilusão dos
companheiros sobre sua “noite de almirante”, tenha significado para ele manter
a ilusão do amor que perdeu? Assim somos nós aqui do lado de cá das páginas:
desde que o mundo é mundo, protegemo-nos até de nós mesmos.
Deu-se, então por encerrada 7ª. Confraria Entrelinhas,
contudo (felizmente) sem a ilusão de que tudo foi dito e esmiuçado sobre a
escrita do Bruxo. Só assim, temos pretexto para novos encontros com a profunda
análise psicológica do autor, que se debruça como ninguém sobre a alma humana
de ontem e sempre, sem deixarmos de apreciar a prosa rica e bem construída, ressaltada
de Um homem célebre:
“As
estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de
alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio,
mas então a terra seria uma constelação de partituras.”
Cármen Machado.
Guaíba,
11 de janeiro de 2012.